As escrevivências são um gênero literário criado pela poeta, contista e grande escritora brasileira Conceição Evaristo. É também um estilo e um ato feminista negro de retirar a mulher preta da invisibilidade em que ela foi colocada durante o processo histórico colonial brasileiro. Evaristo com seu ato de escrita, que é também um ato político, traz à luz vozes silenciadas que atravessam gerações e que mesmo mantendo a tradição oral ancestral afro-brasileira dá um passo em direção à escrita, à autoria e ao protagonismo de autoras negras. Hoje em dia, as escrevivências vem se tornando também uma prática de pesquisadoras nas Universidades brasileiras, tanto na área de Letras quanto nas áreas de educação, antropologia, psicologia e no campo das artes. Ao invés de citarem sempre os mesmos autores de referência, sempre retomados e revalorizados, a proposta é que o testemunho em primeira pessoa traga à tona não somente a história factual ou aquela contada por aqueles que detém o poder da pena e da cátedra, mas também as marcas subjetivas do sofrimento racial que não estão nos livros. Não se trata somente da exposição do que dói e faz doer, mas mostrar as viradas que a luta política e mesmo as subversões cotidianas da vida dessas mulheres dá a ver, trazer à baila o que surpreende e que porta a transmissão de um saber que nos ensina sobre a força da cultura, da língua, da potência de um Brasil que não quer mais ser subjugado.
Vemos se desenvolver, nos últimos anos, impulsionados pela transformação que a política de cotas trouxe para a universidade, a prática das escrevivências como nova metodologia de pesquisa, que graça como um ato político de decolonização dos saberes universitários, em geral eurocentrados e calcados em autores homens heteros, cis, brancos e privilegiados. O descentramento do saber como égide do poder patriarcal tem produzido mudança nos rumos do país e do lugar de vozes que tem um potencial de transformação para um futuro democrático.
A prática de escrevivências articulada à psicanálise tem sido desenvolvida pelo coletivo Ocupação Psicanalítica há aproximadamente dois anos, em quatro estados brasileiros – Minas, Espirito Santo, Rio de Janeiro e Bahia. As psicanalistas negras escrevem sobre sua trajetória e trazem à tona suas vivências como objeto do racismo, mas também as subversões que encontram na própria análise, na universidade, nas lutas sociais e em outros espaços de vida que se constituem como saídas da lógica da opressão racial e sexista. Além dos relatos individuais, temos desenvolvido práticas de escrevivências que atravessam coletivos, através das conversações. No caso do Portal Favelas, tivemos cinco encontros com lideranças de cinco favelas ou regiões periféricas, com a presença de dois psicanalistas que escutaram as lideranças e passamos a escrever sobre suas experiências relatadas.
O leitor terá a oportunidade, a seguir, de ter acesso ao resultado dessa gira. O extrato dessa conversação tematizou a vivencia de ativistas políticos periféricos do Borel, do Jacarezinho, da Maré, da Vila Vintém e da Baixada Fluminense, transmitindo a importância da comunicação popular como meio de defesa contra a violência do estado e fonte de invenção coletiva por meio da força ancestral do quilombo. O aquilombamento que rege a direção ética e de resistência dos movimentos de luta nas favelas e periferias remete às estratégias criadas pelos quilombos no processo de abolição e de independência do Brasil-colônia. Os quilombos abriam uma brecha no sistema escravagista e eram uma forma de não aceitar o lugar de subserviência aos quais indígenas e negros foram submetidos pela coroa portuguesa e demais senhores europeus que invadiram nossas terras.
O espírito do aquilombamento está presente na força militante de favela que reunimos nestas falas. O dizer aqui presente que enoda os diversos depoimentos mostra os enfrentamentos realizados por décadas, em um ambiente de violação de direitos por parte do Estado. Descortina um horizonte terrível de genocídio da população negra e periférica, mas também a força singular e coletiva que transformaram essas pessoas em personalidades conhecidas nas comunidades, referências da luta política pela emancipação das favelas do Rio e que, muitas vezes, encabeçam também importantes ações nacionais.
A presença do Psicanalista em meio aos movimentos sociais instala um novo espaço na prática com o inconsciente, que coloca as iniciativas de insurgência do oprimido além do horizonte de conscientização política. Considerar que há forças traumáticas, sintomáticas, pulsionais que levam à repetição do assentimento da opressão, que conserva a submissão e que paralisa a luta frente ao poder necropolítico é o primeiro passo para uma guinada que não se restringe à consciência e à razão. Nossa escuta pode ser mais um espaço escrevivente, em que cada um e cada uma pode conversar sobre a própria história, retomar na oralidade suas histórias e memórias e eventualmente transformá-las em escritos que transmitam a experiência.
Vejamos, portanto, os testemunhos dessas cinco lideranças que passaram à escrita ao longo do processo de conversação psicanalítica e que ao final produziram um vídeo e um samba.
Patrícia Felix da Vila Vintém
Quero começar dizendo que estou cansada. Estamos cansados.
O que aconteceu com nosso companheiro (que foi humilhado e perseguido por um policial na sua própria favela) mostra o quanto estamos expostos. Tem uma milícia que nos persegue. Que nos mata e nos difama, espalhando notícias falsas a nosso respeito. Hoje é disso que preciso falar. Uma pessoa acabou de ser executada por milicianos na comunidade. A gente vai de um a outro lugar para buscar socorro, mas não nos ouvem. Essas famílias atingidas precisam da gente, elas não têm outras referências. E, no entanto, nós também não somos referência. Somos referência só quando morremos, quando viramos mártires.
Com o Portal Favelas furamos algumas bolhas. Alcançamos pessoas na própria comunidade que achavam que racismo não existia. Quando trago a questão da saúde mental e do direito, é para que elas saibam que tem instituições que podem defendê-las. As pessoas não conhecem e há todo um ataque para que elas não saibam em quem confiar.
Eles querem dividir a gente. Foi o que deu certo: dividir a negritude. A única classe que conseguiram dividir foi a classe negra!
Ontem foi o Rumba, amanhã serei eu, depois vai ser a Nívea. Estou cansada. Precisamos de proteção para trabalhar. Precisamos desse resguardo para trabalhar.
Tem duas semanas que uma mãe, ameaçada por um grupo de extermínio, procura ajuda e não consegue falar. Não está funcionando. Quem tem fome tem pressa. A polícia está entrando… Estou muito cansada! Depois de duas semanas tentando proteção para uma família… Eu acionei todo mundo. Ninguém me ouviu.
Ainda tem gente que acha que a gente quer aparecer. Só estou na política para mexer com o sistema. Eu só queria morrer em paz. Somos companheiros de gueto. Estou muito cansada! Não quero mais enterrar nenhuma criança. Eu estava no Jacarezinho. Não fui para o ato porque não aguento mais gritar por justiça, não adianta mais. Prefiro ir à missa do 7º dia, eu quero escutar, consolar, acolher a família e chorar junto com ela.
Preciso falar. Estou com os milicianos em cima de mim. Não quero virar mártir de ninguém! Quero que minha luta seja reconhecida sem que eu tenha que ser morta.
Por fim, repito, estou cansada, mas estamos na luta.
Estou muito entusiasmada, porque estou muito puta!
Rumba Gabriel do Jacarezinho
A gente praticamente está entregue. Mas um espaço desse aqui nos coloca em evidência.
Estou cansadíssimo! Tem gente que ainda diz: “O Rumba quer aparecer!”.
Se eu não aparecesse, ninguém saberia do que está acontecendo na minha vida. Estou preso! Nesse programa de proteção às lideranças, lutando sem arma nenhuma.
Basta uma publicação falando mal da gente, o mundo da gente vai abaixo. São fake news lançadas em nossas vidas: “ele está envolvido com o tráfico…” A tevê colocando insistentemente a minha imagem.
A coisa só não foi pior porque a gente tem credibilidade na comunidade, participando em diversas comissões. Muita gente já conhece nossa trajetória. Mas o ataque não para, é insistente.
Outro dia tive que voltar correndo porque tinha uma notícia ruim: o policial que eu denunciei parou um amigo e mandou um recado – o Rumba está atrapalhando nosso trabalho.
Sobre o massacre aqui no Jacarezinho: eles queriam preparar a favela para entrar a milícia. Eles vão passar a boiada. Tudo na cara.
Com quem que se pode contar para combater essa coisa gigante?
Somos nós, somente nós. Paty, Rute, Lourenço, Nívia.
Muita gente diz que está conosco. Mas não. Não estamos juntos e misturados.
Eu quero é sumir disso. Quero que isso seja exterminado.
Vou colocar isso em nosso samba.
Eles quiseram usar as crianças como pretexto. Dizer que era para proteger nossas crianças. As crianças estão sempre pelas madrugadas aí na rua, ninguém faz nada. Elas morrem.
Deixe-me perguntar: uma criança de 10 anos pode ser expulsa da escola?
Mas foi isso que aconteceu. Uma avó, alcoólatra, tendo que dar conta de cuidar de três crianças pequenas. Um dos meninos já estava na endolação.
As pessoas não sabem o que a gente passa na favela.
Todos vocês deveriam ter estátuas, troféus.
É por isso que eles querem nos criminalizar. Por causa das minhas denúncias, uma porrada de policiais foi expulsa, em cana. Eu não vou parar não.
Espaço para promover um instrumento sábio, inteligente. Ferramenta de visibilidade.
Eu quero aparecer? Não, quero me blindar. Estamos incomodando, por causa do Portal Favelas, Mulheres guerreiras… Mariana, Paty, Rute…
Nossos inimigos internos. Só puxa o tapete do rei quem está dentro do palácio.
Tem gente que não quer brancos aqui. Tem que ter aliados! Não estamos juntos e misturados ainda! Quem dita regra são aqueles que estão na frente. Para que a gente possa descer esse morro para ocupar nossos espaços, não para destruir. A favela precisa escutar.
Rute Sales do Borel
Oriunda do morro do Borel, sempre fui de favela… Nossa luta começa muito com o direito à moradia. Nossa favela era tudo despejada. Nós éramos chamados de invasores. Todos os espaços de quilombo que a gente ocupava. Nos espaços valorizados, nós éramos invasores. As mulheres colocavam os filhos deitados nas ruas para os tratores não derrubarem os barracos. Minha mãe contribuía muito, porque ela tinha 13 filhos.
Movimentos de mulheres negras dizem que nossos passos vêm de longe. Quando a gente ocupava algum espaço não era ocupação era invasão. A gente não tinha nada: nem água, nem luz, nem nada. A gente ia buscar água na bica lá no final da rua. Na eleição, eles traziam a bica mais um metro, mais perto um pouquinho, até a gente entender que tinha direito a água encanada. Hoje está num momento de muita morte do nosso povo preto, mas antes nós tínhamos muito menos espaços de denúncia! Temos alguns instrumentos que denunciam! Eu tive 2 irmãos assassinados e não teve repercussão, mas foram surgindo movimentos de mães, de mulheres que hoje denunciam.
Estou fazendo uma leitura que é de dor. Também já chorei muitos e muitos corpos de adolescentes sumidos e assassinados. A gente sempre fez disso uma bandeira de luta e de resistência. Não só pra denunciar, mas também para propor políticas públicas. Temos que tirar o que é melhor disso tudo, que é o que a gente constrói.
Experiência do jacarezinho… É muita dor! Esse Estado genocida entra e mata! Mata como se fosse um presente dado! Um presente do governador para o presidente genocida.
Esperança de transformação, de mudança de governo. A era Bolsonaro traz a reflexão de quem coloca e quem tira o poder nessa cidade.
Ocupar os poderes dessa cidade é um outro movimento além da denúncia. Nós temos que estar nesses espaços. Esse governo fez um desmanche! Fundamental construir uma narrativa de ocupar espaço com mulheres pretas, com nosso povo negro. Nosso povo só vai parar de morrer quando a gente de fato ocupar os nossos espaços na cidade.
Até quando vamos chorar o sangue do nosso povo morto dentro da favela, arrastado pelo capitão do mato?
Choro desde menina. O diferencial é que estamos reagindo. Estamos chorando e sentindo dor, mas precisamos mudar nossa história.
Minha mãe foi uma mulher muito resistente e usava a cultura e o teatro para não só formar e conscientizar, mas colocar pra fora o que precisava, o que sentia, e o que queria.
Espetáculos: “Mãe de pedra”, “A constituinte e o povo”, “Um drama em cada barraco”. Minha mãe colocou os 13 filhos na frente do trator pra impedir de derrubarem nossa casa. Mas também na frente do palco!
Espetáculo em cartaz com diversas crianças da comunidade. Antes do Betinho já existia a minha mãe. Ela trazia aquela xepa da feira, fazia aquele sopão e os alunos vinham todos. Dava aquela sopa e ensinava aquelas pessoas. Mulher muito transformadora.
Trabalhou com população de rua. No final, minha casa parecia um centro comunitário, um verdadeiro espaço de transformação e empoderamento do povo da favela. Cada um de nós continua sustentando essa herança que minha mãe deixou para nós todos. Cada um fazendo algo de transformador na vida de alguém.
Lourenço Cesar da Maré
Minha história está muito contemplada na de vocês. Como o favelado traz algo dessa luta pela moradia. Não tinha água. Hoje minha filha sente falta de wi-fi. Tinha que andar 400 m pra trazer água no baldinho. Sou filho de mãe solteira que conseguiu criar 5 filhos sozinha. Não sei como ela conseguiu, cada um com um pai diferente. Perdi um irmão aos 16 anos. Isso foi matando minha mãe aos poucos. Os 4 que sobreviveram foram estudar. Através do CEASM passei a ter uma paixão pela favela e a conhecer a favela. Foi virando uma militância defender essa favela.
A mídia nacional já estava com outra pauta, eles esquecem.
Mateus era um menino de 8 anos que foi morto com a roupa da escola. Acompanhei o policial que matou o Mateus… quando ele atirou já começou a chorar, já ficou meio lélé da cuca. Segui ele. Não pra me vingar, mas pra saber o que aconteceria com ele depois de matar uma criança. Subiu no alto do morro e se desesperou. Não teve qualquer dia de folga ou afastamento por matar uma criança. No dia seguinte já estava no trabalho de novo. Busquei saber. A corporação não fornece apoio psicológico para um policial que vive em meio a traumas todos os dias. Matam o amigo dele e no dia seguinte ele tá na ativa de novo.
Esse policial que assassinou meu sobrinho e enlouqueceu, morreu pouco tempo depois em troca de tiro. Eles criam uma moral de que favelado é perigoso. Se não é bandido, uma hora vai virar… A maior parte dos policiais que morrem em troca de tiro, são policiais abalados psicologicamente. Cultura da violência e da propina que é surreal no Rio de Janeiro. Até para sair do batalhão, tenho que garantir que vou trazer algum no fim do dia. Concordo com a Rute… Apesar de tudo, a gente ainda tem muito o que comemorar. Coordenei um projeto para tirar garotos do tráfico. A gente conseguiu tirar muitos… 65% não voltaram. Era um projeto para o Estado e não uma ONG.
Ter um contato com mídias internacionais que sirvam de ponte para a notícia chegar mais rápido e com muito mais força é estratégico. É um caminho para ter uma referência, para dar visibilidade aos casos e forçar que a imprensa nacional noticie. Essa é nossa luta na Maré, criamos o primeiro jornalzinho: O cidadão. Esse é outro caminho de representatividade. A gente precisa colocar mais gente pra ter mais voz. Fortalecer lideranças com potencial eleitoral. A favela não vota na esquerda, ela vê no branco uma esperança de resolver seus problemas.
Nívia Raposo da Baixada Fluminense
Gente preta tem uma vivência muito parecida!
Nasci num terreiro de candomblé. Era apontada na rua como filha da macumbeira.
Minha mãe dava aula em casa. Falávamos muito em Iorubá. Uma linguagem materna muito diferente.
Eu gosto muito de escutar a nossa gente. Gosto de citar nossos próprios heróis.
Chacina que aconteceu em Belford Roxo. Um deputado pediu um destacamento de polícia a partir de uma suspeita de ameaça contra ele. A polícia já veio fazendo arbitrariedade junto com milicianos da própria região. Havia uma disputa do tráfico com as milícias. A polícia foi como escudo para a milícia tomar o território. Houve uma quantidade enorme de mortos. Os vídeos são horríveis. Encaminhamos os vídeos para o MP fazer denúncia. Algumas mães tiveram uma audiência com Fachin, em sigilo, antes da audiência pública. Houve tentativas de frear essa violência. Quem conseguiu recolher o corpo… estavam indo em carroças. Muito sangue pelas ruas. Não passou no RJ TV.
Há uma quantidade de ONGs de milicianos concorrendo aos editais. É importante mapear as relações dessas mães, ver se não são parentes de milicianos, é muito complexo. Muitas mães se mudaram, foram morar na casa de parentes, pois estão com medo. Aqui é diferente de algumas favelas no Rio, onde a polícia vem de fora entra na comunidade. Aqui, os milicianos são vizinhos e a qualquer momento pode ocorrer um assassinato. Apareceu na Globo, dois jovens mortos a luz do dia no bairro da Cerâmica. A menina que filmou virou prisioneira. O cara foi na delegacia, prestou depoimento e foi liberado. A mãe precisou fugir. Tem também as disputas entre milicianos. Não sei o que é pior, são mortes com muito requinte de crueldade. Eles mesmos filmam e viralizaram para espalhar o medo. Mortes horríveis, cortam cabeças, tiram o coração, remontam o corpo… cada dia é uma barbaridade diferente. Ninguém vê, ninguém viu. Houve um rapaz que foi montado como uma galinha de despacho, colocou o coração do amigo na cabeça. Barbaridades.
Chamo de quilombo urbano a luta por resistência que fazemos porque aqui é assim: como eu era filha de mãe de santo, as pessoas pressupunham que eu tinha esse saber. Quando eu conto sobre isso, é porque meus filhos foram criados nesses espaços. Minha mãe não impunha que a gente seguisse a religião dela. Aqui é muito sincrético, tem muito trabalho da igreja católica. Minha mãe fazia questão que a gente fizesse a primeira comunhão. Devota de nossa senhora. A gente ia em tudo, nos cultos. Minha mãe continua sendo a rezadeira do bairro. As crianças aqui em casa já vivem isso. Quando vejo as pessoas dizendo que precisam se tornar negro, eu nunca precisei disso porque sempre soube o que era.
Quando você está dentro de um terreiro, a gente já sabe antes. Quando você está do lado de um babalorixá, isso chega muito antes, até antes da cor. O problema não é chamar de macumbeiro, mas os adjetivos que vem junto: preto safado, macumbeiro desgraçado. Isso despertava a certeza do que a gente sempre foi, do que a gente era. Sempre criei meus filhos para não aceitar os rótulos que o povo coloca pra gente. Meu filho diz que ele é cria mas não é criado. Isso está em músicas de funk. Isso é muito forte em minha memória. A comunidade negra é assim. É você passar no mercado, no shopping, em algum lugar e você já dá um sorriso. É natural, como se fosse um aprendizado de solidariedade. Aqui tem muito isso, do comum.
A gente aprende isso, como se fossem meus primos. Amigos que tomam conta dos nossos filhos… Tem vizinho que não conhece o vizinho, mas na favela não é assim. Comunidade negra é muito inclusiva, sempre um tomando conta do filho do outro. Outro dia falei sobre isso comentando sobre as crianças desaparecidas de Belford Roxo. Tentei explicar isso para desembargadores brancos. A criança não vê fronteira. A pipa voou, ela vai atrás. Ela não se limita por ser um território rival. Elas vão em qualquer lugar, ainda tem crianças que correm atrás de doce, de pipa. Jogam bola de gude. Coisas que não vemos em outros lugares, mas faz parte da minha memória. Os meninos desaparecidos de Belford Roxo roubaram uma gaiola de passarinho pra brincar. Foram assassinados.
Estava conversando sobre tempos em que a gente trocava pintinho e picolé por panela de alumínio. Isso não tem muito tempo, uns 30 anos. Uma garrafa dava pra pegar muito picolé, muito pintinho.
Rumba – Lembra do circo que vinha na favela que tinha um leão magrelo. As pessoas trocavam os pintinhos por garrafas. Levavam para o circo e só achavam os ossinhos.
Os gatos sempre sumiam quando o circo aparecia. Sempre teve isso aqui. É muito bacana lembrar dessas coisas. Eu era praticamente um menino. Jogava pipa, jogava bola. Entrava na porrada com todo mundo por causa de jogo. Passei isso para meus irmãos mais novos. Depois para os meus filhos. As coisas ficam muito vivas na nossa memória.
Lourenço – Muita coisa dessa tradição mais preta a gente perdeu para a baixada. Um moço que sempre fazia algumas coisas, Sr. Nilo, parou de fazer porque muita gente virou evangélico. Muita coisa sumiu. Lideranças católicas saíram. Jogar bola de gude no asfalto não tem mais graça. Tem coisas que vem para o bem, mas nunca fica 0 x 0 ou 1 a 1 … a gente sempre perde alguma coisa.
Toda marca negra do Rio de Janeiro: samba, caipirinha, mulata… toda vez que a gente faz isso o capitalismo vem expropriar. As escolas de samba são um exemplo. O tempo todo a gente é expropriado. O negro tem a maior dificuldade de entrar por causa do preço. Eu sou negro que me reconheço negro há pouco tempo. Isso bate muito forte, saber que tem pouco tempo que me reconheço como negro.
E então surgiu a ideia do samba como produção cultural que inaugura as escrevivências aquilombadas como novos modos de reunião, de encontros coletivos de escrita na favela, de troca, de refúgio, de ouvir uns aos outros na construção de testemunhos das nossas memórias.
Samba das escrevivências do Portal Favelas
Alô favela pro seu saber e sua vivência
O Portal Favelas está trazendo Escrevivência
Vem chegando de mansinho
Carregado de Axé
Passará por muitos morros,
Mas começou no Jacaré
A Maré não está pra peixe,
Mas não tem cerca Lourenço
Marielle ali presente
Traz seu brilho onipresente
Sofrimento é uma constante neste povo de favela
Acontece que na Tijuca quem tem fé não fica ao Léo
Porque tem gente esperançosa dentro do morro do Borel
Na baixada tão sofrida, isolada sempre a míngua
Tem guerreira emponderada
Nos terreiros e na ginga. Nzinga.
Na Vintém Padre Miguel, muita gente na labuta,
Mas especial a Paty
Mulher firme e de luta, apesar das conquistas
Ela diz que ainda está puta!
Composição de Rumba Gabriel e adaptação de Claudio Barros
Autores:
Fabio Bispo
Lourenço César
Mariana Mollica
Nivia Raposo
Patricia Felix
Rumba Gabriel
Rute Salles
Diretora de Jornalismo