Na quarta-feira (15/02), a Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro fez uma ação na favela Cidade de Deus, zona oeste do Rio de Janeiro. A ação partiu da denúncia dos moradores a respeito do risco de desabamento de suas casas e do aumento repentino de operações policiais no território. A visita foi dividida em dois momentos diferentes, uma na parte da manhã e outra na parte da tarde, contando com a participação de núcleos diferentes da Defensoria Pública, o Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) e o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH). Junto destes, acompanharam também a visita os psicanalistas membros da RAAVE (Rede de Atenção a Afetados pela Violência de Estado) e do Ocupação Psicanalítica, eixo Rio de Janeiro, ligados ao Portal Favelas. A visita na parte da manhã também contou com a presença da vereadora Mônica Cunha (PSOL-RJ) e do vereador Édson Santos (PT-RJ).
Esta matéria é parte de uma metodologia que o Coletivo Ocupação Psicanalítica está construindo junto ao Portal Favelas a partir da escuta dos psicanalistas em suas intervenções no território, que passam à escrita após o tempo de supervisão em grupo daquilo que foi escutado dos moradores. O leitor tem acesso, a seguir, ao relato coletivo de psicanalistas e estudantes de psicologia que buscam, a partir da escuta da voz dos moradores, reverberar as ressonâncias da vivência subjetiva da periferia para outros setores da sociedade.
Antes de tudo, é importante relembrar um pouco da história deste território para entender melhor a situação que encontramos. A história da Cidade de Deus é marcada por um processo político violento de remoção de favelas de diversas áreas da cidade e realocação das populações nesse território. Esse processo vem acontecendo desde a década de 1960 e foi promovido por diferentes programas de governo, por vezes junto de programas de habitação, como foi o caso do território que encontramos em nossa visita.
Nos chamou particular atenção às inúmeras situações de negligência com a população local, tais como desabamentos de casas causadas pelo gás tóxico do saturado aterro sanitário sobre o qual as casas do conjunto habitacional foram construídas. Ficamos impactados com a gravidade da situação, pois diferentemente do que se esperaria numa circunstância como esta, as construções não se deram por meio de um crescimento desordenado por aqueles que, sem teto, se viram forçados a construir naquele local. Segundo informações dos moradores, essas casas foram fruto de uma política habitacional da cidade do Rio de Janeiro na década de 1990, o que nos refere às seguintes perguntas: por que casas de uma política habitacional foram construídas sobre um aterro sanitário? Nenhum estudo de impacto ambiental foi feito? Por que essas habitações foram oferecidas à população preta, pobre e favelada?
Recentemente, as chuvas de verão culminaram em diversos desastres, com o discurso governamental quase sempre se limitando a promessas de desapropriação do terreno e de indenização dos moradores, somadas a justificativas acerca das mudanças climáticas. Ao que nos foi informado, a GeoRio já teria feito visitas às casas com risco de desabamento e já teria feito algumas desapropriações, mas sempre individualmente, nunca levando em conta todo o conjunto habitacional; o que é muito estranho, se levarmos em consideração que as casas são geminadas e os riscos que o terreno oferece é o mesmo para todas as casas. Contudo, ampliando a nossa percepção em torno das questões, percebemos que as vítimas quase sempre são pretas e pobres.
O racismo ambiental, termo que tem tomado relevância pública, nos convoca a pensar onde e como são centradas as nossas políticas de moradia que ao se concretizarem em tragédias tornam pessoas pretas e pobres vítimas de mais um dos braços da violência de Estado. O racismo ambiental se refere “à carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos étnicos mais vulneráveis”(Passos,2021:https://www.conectas.org/noticias/entrevista-como-o-racismo-ambiental-afeta-a-vida-das-pessoas-negras-e-indigenas/) mostrando que a destruição do planeta não acontece de forma democrática. O capital se vale das desigualdades para sua expansão e os espaços onde as pessoas são removidas e negligenciadas têm cor: são pretos e indígenas.
Tivemos oportunidade de presenciar como o racismo ambiental determina a ameaça cotidiana de morte para a população da Cidade de Deus e como as incursões policiais trazem um acréscimo de terror a esta comunidade já abalada. Com o aumento repentino de operações na região, acompanhados de abordagens truculentas e invasões ilegais às residências, os moradores acionaram a Ouvidoria da Defensoria Pública que esteve no território colhendo relatos dos moradores na parte da tarde de nossa visita para averiguar a legalidade da situação. Destacamos nos relatos, alguns pontos que nos chamam especial atenção. O primeiro deles foi o clima de medo em torno da denúncia. Os moradores que foram ao encontro com os defensores eram porta-vozes de outros, ausentes, que por temor de serem vistos junto dos defensores, tendo seus nomes e dados expostos para efetivar a denúncia, precisam silenciar-se. Se a grande maioria dos que estavam presentes na reunião não foram as vítimas diretas das ações policiais denunciadas em função do clima de medo, clima esse que impede a concretização de qualquer ambiente democrático, podemos dizer que não tivemos acesso direto à angústia e ao horror vivenciado pelas vítimas mais agredidas e ameaçadas.
Outro aspecto foi a fala de um morador fazendo referência ao uso de câmeras pelos policiais. Ele questionava porque em operações na Barra da Tijuca e na Freguesia os policiais andavam com câmeras e em seu território não. Apontava ainda que tal determinação já havia sido feita pelo STF, desde dezembro do ano anterior, mas não estava sendo cumprida. De fato, isso foi pleito eleitoral do atual governador, Cláudio Castro, que chegou a dizer que recorreria até o último recurso contra essa determinação. Vale lembrar que após a colocação da câmera nas fardas da polícia militar em São Paulo, o índice de letalidade policial reduziu em 80% como podemos conferir na matéria a seguir: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/05/cameras-no-uniforme-da-pm-letalidade-policial-intervencao-lesao-corporal.htm
O que se pode entender de um governador que resiste diuturnamente pelo descumprimento dessa determinação do Superior Tribunal Federal brasileiro?
O que encontramos foi uma política perversa que escolhe como área de atuação – o que não é atoa – territórios de favela.
Os moradores também relataram sobre a frequência abrupta de operações e a dificuldade de reconhecer se é uma operação ou somente uma ronda policial. Por vezes, nessas incursões, os agentes saem literalmente de esgotos e valões, já atirando, e considerando qualquer morador como criminoso. Freud chega a diferenciar o medo, que tem um objeto definido, a angústia, quando o sujeito visa se preparar para um pior difuso e traumático e o terror, quando se instala por meio do susto uma tragédia sem qualquer expectativa prévia. Podemos testemunhar que embora o medo esteja localizado na polícia e a angústia seja uma reação cotidiana que paralisa os moradores na tentativa de se preparar para o ataque seguinte, o que presenciamos é a vivência do terror, quando não se encontra representações para lidar com um excesso absolutamente fora de qualquer coordenada simbólica.
Em outras ocasiões, os policiais invadem as casas dos moradores sem mandado ou sinal de atividade criminosa, violam a privacidade dos moradores e impossibilitam qualquer sensação de segurança dentro dos lares.
A importância da presença da defensoria junto aos coletivos da RAAVE, no entanto, permitiu traçar algumas perspectivas de reação e organização coletiva, que venham a impedir o ilimitado do horror. Após discutirem esse ponto, uma invenção muito interessante foi proposta. Um dos moradores sugeriu à Defensoria que fizesse uma espécie de placa para colocar na frente das casas ou que, então, pudessem distribuir cartilhas contendo os direitos que cada morador tem para deixá-las à vista, na entrada de suas casas. Por mais que o policial invadisse a casa ilegalmente, ele não teria a mesma conduta caso visse a cartilha e soubesse que dentro daquela residência todos sabem dos seus direitos. Premissas como essa são as mesmas que fizeram o Portal Favelas se formar e, junto dele, tantos movimentos de periferia, numa certa resposta aos abusos e violências cometidos com o povo preto e favelado. A aposta num saber compartilhado que legitima os direitos como cidadãos não é sem consequências para o estado micropolítico. Certa vez, na favela do Chapadão, após nossa visita junto aos moradores, na vez seguinte, quando a polícia estava, ao que tudo indicava, levando três jovens para execução, os moradores se juntaram e foram acompanhando a operação gritando: “vocês não podem matá-los, eles têm direito ao devido processo legal!”
Certo morador trouxe sua interpretação sobre o crescimento das operações policiais e defendeu que o aumento se deu a partir de uma reportagem que narra os recorrentes confrontos entre facções criminosas e milícias na Gardênia Azul, favela vizinha à Cidade de Deus. Nesse cotidiano, o imaginário dos moradores cria tendências e opiniões para entender porquê as operações vêm crescendo. Além disso, é interessante refletir a função da mídia comercial na criação dos porquês, as causas e os fatos expostos na narrativa imaginária dos habitantes de cada região.
Por outro lado, alguns moradores se mostraram impressionados com a presença da Defensoria Pública dentro da favela da Cidade de Deus, como uma sensação de “surpresa”, mesmo que a visita tenha sido combinada com a associação de moradores.
Os moradores que participaram da reunião com a Ouvidoria encontravam-se revoltados com a situação e viam nos órgãos de Justiça sua última saída, diziam que não acreditavam mais em política, que dessa maneira não conseguiam nada. Surpreendentemente se dirigiram à ouvidoria e disseram que estavam ali por ainda acreditar na Justiça, porque se não acreditassem nela, não sabiam em que iriam acreditar.
A maneira com que a população desse território é tratada os coloca no lugar de dejetos sociais. A morte está sempre à espreita desses sujeitos, ela vem do lixo, vem do esgoto, vem dos bueiros, ela explode o chão, ela desaba sobre as suas cabeças. Ela inclusive é a mesma que fez com que aquelas pessoas fossem removidas e realocadas para aquele território. Só isso basta? Não, a necropolítica ainda é capaz de silenciar esses sujeitos com o medo e impedir a luta conjunta pela melhora da condição de todos em uma verdadeira arquitetura perversa do Estado. Seus efeitos se fizeram sentir na nossa escuta, a partir de nossa presença. Mas tivemos acesso apenas a uma parte da tragédia, pois as ações são organizadas e difusas.
A visita da Defensoria Pública e dos coletivos que integram a Rede de Atenção a vítimas da Violência de Estado (RAAVE) evidenciaram como a expectativa com a presença e atuação do Estado é ínfima, muitos se mostraram excessivamente gratos por estar em corpo sendo escutados ou podendo nomear como chegamos a essa “Arquitetura Perversa”. É notório o descaso de mais de três décadas com a população da cidade de Deus. A naturalização do descaso e da posição de dejeto social é, muitas vezes, reforçada em cada reclamação não ouvida e atendida.
Como parte dessa intervenção política, a psicanalista Gisele Da Hora produziu um poema-paródia a partir dos versos de Vinicius de Moraes.
Era uma casa
Era uma casa nada engraçada
Só tinha papo
Não tinha nada
Ninguém queria entrar nela não
Porque na casa tinha explosão
Ninguém podia dormir na rede
Porque as rachaduras estavam na parede
Ninguém podia sequer dormir
Porque segurança não tinha ali
E o Governo, sem muitos esmero
Fez o povo de bobo
Com dignidade zero
Créditos:
Gisele da Hora
Lucas Correia da Silva
Paulo Vitor Gama
Mariana Mollica
Diretora de Jornalismo